Com mais de 20 álbuns lançados, o compositor e violonista Guinga tem uma extensa obra lançada no Brasil, além de ser prestigiado no país e no mundo. A cantora Anna Paes lança pela produtora e gravadora Kuarup o CD Você Você – Anna Paes Canta Guinga. No projeto que tem edição física em CD e está disponível nas plataformas digitais, a compositora interpreta a obra de Guinga, acompanhada pelo compositor ao violão. O repertório, composto por valsas, canções e toadas, em onze faixas, traz parcerias de Guinga com Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Chico Buarque, José Miguel Wisnik e Thiago Amud. O álbum é o segundo disco da carreira da artista e o primeiro onde atua como intérprete de canções não-autorais. Gravado entre março e abril de 2022 no Studio Araras, a produção artística, a gravação, a mixagem e a masterização são assinadas por Sérgio Lima Netto.

 

Foi em um sarau de compositores no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, que Anna Paes conheceu Guinga, em junho de 2013. Anna já tinha interesse pela sua obra, que estudava com as partituras do songbook A Música de Guinga (Gryphus, 2003). Desde então, Anna Paes faz participações como intérprete em shows de Guinga em cidades do Brasil, Espanha, França e Estados Unidos. No seu álbum de estreia, Miragem de Inaê, lançado em 2016, o violonista Guinga está presente em duas faixas. A partir de 2018 a cantora começa a compor canções em parceria com Guinga.  O álbum  Você Você – Anna Paes Canta Guinga é, portanto, o resultado de quase dez anos de convivência musical entre Anna Paes e Guinga. O disco traz uma seleção de canções intimistas. Embora a maioria das canções já tenha sido gravada – a exceção é a canção inédita Sonhadora – muitas das composições têm um sabor de ineditismo, seja porque foram gravadas uma única vez há muitas décadas ou porque jamais foram gravadas por Guinga nessa formação de voz e violão. Na ordem do disco, há dois blocos de quatro canções com os principais parceiros, Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc. O primeiro bloco de canções com Paulo César Pinheiro representa a fase inicial da sua carreira, nos anos 70 e 80, quando ainda era um jovem compositor, de vinte e poucos anos. O segundo bloco das canções com Aldir Blanc, representa a fase de consolidação da sua carreira, a partir do início dos anos 1990. Entre os dois blocos estão as parcerias posteriores, com Thiago Amud e Zé Miguel Wisnik. A faixa-título Você Você, única parceria entre Guinga e Chico Buarque, encerra o disco.

 

Faixa a faixa

 

Quadrão (Guinga e Paulo Cesar Pinheiro) é uma canção composta nos anos 1970. Segundo Guinga, a inspiração villalobiana da melodia vem da escuta da gravação do coro feminino cantando a canção Estrela é Lua Nova, de Villa-Lobos. A letra de Paulo Cesar Pinheiro faz referência direta a essa inspiração no verso “lua nova beijando a Estrela Dalva”, além de evocar a paisagem da mata brasileira e seus pássaros, também presentes não só na obra de Villa-Lobos (Uirapurú), mas também na obra de outros compositores emblemáticos na música brasileira como Luiz Gonzaga (Acauã, Assum Preto e Asa Branca) e Jaime Ovalle (Azulão). A canção foi gravada pela primeira vez em 1980, no álbum Paulo César Pinheiro (EMI-Odeon), em dueto vocal de Guinga e Paulo César Pinheiro e regravada em 2014 por Mônica Salmaso no álbum Corpo de Baile.

 

Sonhadora (Guinga e Paulo Cesar Pinheiro) é uma canção inédita há 48 anos. Também traz inspiração villalobiana além de uma lírica seresteira. A letra retrata o amor idílico, trazendo a natureza como pano de fundo, a figura do trovador e a relação com sua musa: “E pela estrada onde mora o meu amor /entre o arvoredo a lua faz rendas de cor/ a passarada cobre o chão de folha e flor / pra sonhadora passear com o sonhador”. Em 2014, Mônica Salmaso lançou outras tantas canções desse repertório, que também estavam inéditas, no álbum Corpo de Baile. Anna Paes conta, no texto do encarte do CD, sobre o impacto que esse conjunto de canções lhe causou quando teve acesso a esse material, antes de conhecer Guinga pessoalmente, a partir de um CD com transcrições das gravações originais em fita K7, de Guinga cantando e se acompanhando, entregue a ela por Paulo Aragão.

 

Valsa Maldita (Guinga e Paulo Cesar Pinheiro) é uma valsa de cunho dramático, falando da dor e da angústia de uma separação. “Um resto de esperança, um sentimento antigo / uma cruel herança, um trágico castigo / uma lembrança aflita, a dor de uma separação / e essa valsa maldita a acabar comigo / Ah! Pobre coração!”. Valsa Maldita foi gravada uma única vez pela cantora Márcia, em 1977, no LP Ronda (EMI-Odeon), com arranjo do grande maestro Léo Perachi. Segundo Guinga, o maestro, que já estava aposentado, abriu uma exceção, e fez esse arranjo a pedido de Eduardo Gudin, que era seu aluno. Foi seu último arranjo antes de falecer.

Passos e Assovio (Guinga e Paulo Cesar Pinheiro) é uma valsa cuja melodia se apoia na tradição da seresta, trazendo caminhos harmônicos inovadores. A letra traz a temática da solidão de um seresteiro em cenário noturno, vagando pelas ruas desertas. O tom é dramático e melancólico: “e um violão sangrento me arrancou de dentro uma aurora velada / e para o meu tormento se espalhou no vento uma canção de amor / a música pairou / e a lua apaixonada / chorava como eu / sem ter ninguém dono do seu pudor”. Passos e Assovio foi gravada pela cantora Claudia Savaget em 1979 no LP Mordida ou Beijo (Tapecar/Som Livre) e pelo cantor Pepê Castro Neves com arranjo de Michel Legrand, no álbum Pepê Castro Neves & Michel Legrand (Pointer), em 1985. Em 2018 a valsa foi gravada em versão instrumental por Guinga e Gabriele Mirabassi, dando título ao álbum Guinga Invites Gabriele Mirabassi – Passos e Assovio (Acoustic Music).

Avenida Atlântica (Guinga e Thiago Amud) é uma canção com melodia e letra contemplativas, trazendo um discurso de devoção à musa, que no caso, é a própria praia de Copacabana. “Minha vida é devida aos seus olhos, rainha de sal / pois você, só você transfigura esse meu litoral”. Em 2014 a canção foi gravada pela cantora Ana Carolina no álbum Magic de Sérgio Mendes (Okeh). Em 2017 a canção foi gravada em versão instrumental por Guinga e Quarteto Carlos Gomes, com arranjos de Paulo Aragão, dando título ao álbum Avenida Atlântica (Selo SESC).

Canção Necessária (Guinga e José Miguel Wisnik) esta melodia tem duas letras diferentes. O motivo tem origem na seguinte história. Guinga estava se preparando para gravar o disco Noturno Copacabana (Velas, 2003) e queria incluir a valsa que tinha deixado com Zé Miguel Wisnik. Como Zé Miguel estava há tempos com a melodia e a parceria não se concretizava, Guinga quis saber se ele se importaria que a melodia fosse entregue a outro letrista, de forma a poder incluir a valsa no disco. Zé Miguel aceitou e assim surgiu a Canção Desnecessária (Guinga e Mauro Aguiar), que é a última faixa do CD. Na ocasião do lançamento do disco, num ato de provocação, Guinga convidou Zé Miguel para participar do show cantando a valsa-canção com a letra de Mauro Aguiar. Zé Miguel aceitou o desafio, mas na hora do show surpreendeu Guinga cantando a sua própria letra, que finalmente compôs e chamou de Canção Necessária. Depois do show, Zé Miguel e Mauro Aguiar se uniram em uma parceria chamada Nossa Canção. A melodia desta valsa-canção, segundo Guinga, tem inspiração na obra de Ernesto Nazareth. A letra de Zé Miguel traz uma reflexão sobre o próprio drama que viveu ao tentar criar a letra. Fala do conflito interno do compositor – “já sei que vacilei, mil vezes relutei em te dizer o quanto, cantarolei baixinho frases sibilinas, quase irreais” – e da superação deste conflito para dar vazão à criação – “prometo rios de leite com seus afluentes, uma foz e o mar / aceno com presentes que só o próprio tempo pode adivinhar”.

Valsa Pra Leila (Guinga e Aldir Blanc) – Valsa composta em homenagem à cantora Leila Pinheiro. Foi gravada pela primeira vez no seu disco emblemático, Catavento e Girassol (EMI-Odeon, 1996), inteiramente dedicado à parceria de Guinga e Aldir Blanc, com arranjos para orquestra do maestro argentino Jorge Calandrelli. A letra bem humorada e inventiva de Aldir traz um enredo delirante, que fantasia uma viagem de um casal apaixonado, que sobrevoa um céu noturno, evocando os personagens Wendy e Peterpan, do filme de Walt Disney. “Tu te nublarás, me neblinarei sobre os telhados, galáxias azuis” […] “Toma, Peterpan, mais um lexotan, pra que tanto amor não te enlouqueça” […] “vagalumarás por sobre o campo / eu virei do mar teu pirilampo”. Pela primeira vez essa valsa é gravada apenas com o acompanhamento do violão de Guinga.

 

Nem Cais Nem Barco (Guinga e Aldir Blanc) foi gravada no primeiro disco de Guinga, Simples e Absurdo (Velas, 1991) por Leny Andrade com arranjo de Wagner Tiso. Foi gravada por Alice Passos no álbum Voz e Violões (2016) e Mariana Baltar com o Conjunto Água de Moringa no álbum Os Arcos Paixão e Morte (2019). Guinga compôs essa valsa em homenagem à sua mãe, Inalda. A letra de Aldir divaga sobre o que é o amor e chega ao final fazendo uma declaração sobre a dualidade do sentimento: “Ah, o amor é estar no inferno ao som da Ave-Maria!”

Neblina e Flâmulas (Guinga e Aldir Blanc) foi gravada pela primeira vez por Leila Pinheiro no álbum Catavento e Girassol (EMI-Odeon, 1996), inteiramente dedicado à parceria de Guinga e Aldir Blanc. A melodia representa, mais uma vez, a dualidade e o antagonismo presente no amor e nas paixões incertas. Aldir fala da saga tão comum de uma paixão que começa com uma troca de olhares, um amor que anseia dar certo, mas que, por força do destino, não encontra saída para os impasses da vida e morre na praia. No meio dessa história triste ainda existe um alento para o coração que se despede, sintetizado no verso: “O luto sem saída da hora não vivida é bem pior pro coração que a despedida”. 

Carta de Pedra (Guinga e Aldir Blanc) é a versão cantada da valsa instrumental Igreja da Penha, que é um clássico na obra de Guinga. O compositor sempre escolhe essa valsa para abrir os seus shows como uma espécie de oração, para que tudo corra bem. Foi dedicada ao seu amigo Haroldo Hilário Bessa, que residia na Penha. Homenageia Betinho “O HIV deu positivo porque padecem da doença igual”. Foi gravada pela primeira vez pela cantora Carol Saboya, quando iniciava sua carreira. A valsa é um desafio para cantoras devido à sua grande extensão, do grave ao agudo.

 

Você Você (Guinga e Chico Buarque) é uma toada e ao mesmo tempo um acalanto, como tantos, presentes na obra de Guinga, como Senhorinha e Porto da Madama. Sendo este um disco exclusivamente com o repertório de Guinga e estando ele presente como violonista em todas as faixas, o título Você Você, que poderia ser traduzido como Guinga Guinga, representa este “olhar profundo” de Anna Paes sobre a obra do compositor. Segundo Guinga, a melodia de Você Você ficou guardada com Chico Buarque, sem receber letra, durante oito anos. A ideia da letra surgiu quando Chico observava o cuidado que a sua filha tinha em deixar uma blusa no berço do filho (Chico Brown), para que ele ficasse tranquilo na sua ausência, ao sentir o seu cheiro. Um dos versos da canção diz: “que blusa você com o seu cheiro deixou na minha cama?”. Chico Buarque disse a Guinga que a sua melodia parecia que estava perguntando o tempo inteiro. Não à toa a letra de Você Você é toda composta por perguntas “Que roupa você veste? Que anéis? Por quem você se troca? / Que bicho feroz são seus cabelos que à noite você solta? De que é que você brinca? Que horas você volta?”. Tantas perguntas transparecem o sentimento de amor atormentado pelo ciúme, medo, ansiedade, insegurança da criança diante da perspectiva da ausência da mãe. Ao mesmo tempo, para quem não sabe desse contexto, o enredo poderia perfeitamente estar retratando o sentimento de posse no relacionamento de um casal. Você Você, única parceria entre Guinga e Chico Buarque, é também chamada de Canção Edipiana, entre parênteses.

Sobre Anna Paes

Anna Paes é cantora, compositora, violonista, professora de canto, preparadora vocal e pesquisadora, residente no Rio de Janeiro. Filha do diplomata brasileiro, Carlos Eduardo Paes de Carvalho e de Zazi Aranha Corrêa da Costa, nasceu em Washington, D.C. em 24 de dezembro de 1971, quando seu pai fazia mestrado e iniciava a carreira. Transferiu-se com a família para Brasília em 1974, onde fez sua iniciação musical na Escola de Música de Brasília, nos anos 1980. A partir de 1990 transferiu-se para o Rio, onde continuou os estudos de música na Pró-Arte. Nos anos 1990 integrou o grupo coral Canto em Canto, regido por Elza Lakschevitz, participando de diversos concertos no Brasil e na Europa. Fez parte da Orquestra de Violões Chiquinha Gonzaga. Formada em educação musical pela Uni-Rio em 1998, concluiu o mestrado em música em 2012 com o projeto “Almirante e o Pessoal da Velha Guarda – Memória, História e Identidade”. Atualmente é doutoranda em Etnografia das Práticas Musicais na UFRJ com projeto sobre pedagogia vocal do canto popular. Desde 2003 Anna Paes é professora de violão na Escola Portátil de Música, projeto de educação voltado para a capacitação e profissionalização de músicos através da linguagem do choro. Na Escola Portátil foi responsável pela criação da oficina Inéditas de Paulo César Pinheiro, voltada para o ensino e divulgação de repertório desconhecido de compositores contemporâneos com foco na obra do poeta. Anna Paes tem destacada atividade como pesquisadora. Ao lado de Mauricio Carrilho, foi responsável pelo levantamento da obra de compositores de choro do final do século XIX e início do século XX. Seu trabalho “Enciclopédia ilustrada do choro no século XIX”, produzido através da Bolsa Rio-Arte 2003, contendo cerca de 9.000 títulos de obras de 1.300 compositores, foi licenciado para compor a base de dados do Instituto Casa do Choro. Atuou como pesquisadora e redatora de textos históricos nas coleções de CDs: Princípios do Choro (2002), Memórias Musicais (2002); Mulheres do Choro (2002), Choro Carioca – Música do Brasil (2006), Joaquim Callado – o Pai Dos Chorões (2004). Em 2016, com a canção Choro de Madrinha, em parceria com Iara Ferreira, Anna Paes foi uma das artistas selecionadas para receber o Prêmio Grão de Música, em São Paulo, e ainda para participar do show na cerimônia de entrega do prêmio. Em 2016 lançou Miragem de Inaê, seu álbum de estreia. Em 2022 Anna Paes idealizou e produziu o álbum de partituras Cancioneiro Guinga – Zaboio (Gilly Music), com textos bilíngues, contando com uma equipe de editoração de partituras composta por Ricardo Gilly, Carlos Chaves e Paulo Aragão.

Músicas

  1. Quadrão

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Guinga, Paulo César Pinheiro

  2. Sonhadora

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Guinga, Paulo César Pinheiro

  3. Valsa Maldita

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Guinga, Paulo César Pinheiro

  4. Passos e Assovio

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Guinga, Paulo César Pinheiro

  5. Avenida Atlântica

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Guinga, Thiago Amud

  6. Canção Necessária

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Guinga, José Miguel Wisnik

  7. Valsa Pra Leila

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Aldir Blanc, Guinga

  8. Nem Cais Nem Barco

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Aldir Blanc, Guinga

  9. Neblina e Flâmulas

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Aldir Blanc, Guinga

  10. Carta de Pedra

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Aldir Blanc, Guinga

  11. Você Você

    Intérprete: Anna Paes Autoria: Chico Buarque, Guinga