Não é de hoje que boas safras de artistas brasileiros têm se voltado a fazer trabalhos autorais, criando e cantando as próprias composições. Isso, inegavelmente, não deixa de ser rico e louvável. Nos últimos tempos, porém, quando alguém aparece com um “disco de intérprete”, quase que de bate-pronto já se torce o nariz. Compreensível. Afinal, é risco imenso. A arte da (re)interpretação, por si só, desafia cantores e cantoras a trazer algo de novo. Senão, qual o sentido de regravar uma canção se for somente para copiar, apenas para brincar de papel-carbono vocal?


Sabedor disso, cheio de lucidez e de personalidade, surge Ayrton Montarroyos com seu novo álbum. Em dueto com o experiente Edmilson Capelupi (violão 7 cordas), Ayrton gravou este disco em uma única apresentação no Teatro Itália. Não pude assistir ao show, mas ao ouvir essas dez faixas a sensação é a de estar lá, na plateia, colado ao palco. Quando o álbum chegou às minhas mãos, tive a mesma reação de Chico Buarque quando recebeu a fita para escrever o texto da contracapa do LP Todo o Sentimento, de Elizeth Cardoso e Raphael Rabello. Tal qual Chico diante do trabalho de Elizeth e Raphael, ouvi o disco de Ayrton e Capelupi “quatro vezes de enfiada”. Nos dias seguintes, por um magnetismo inescapável, tornei e retornei ao álbum por muitas vezes. O porquê de evocar Elizeth e Raphael aqui? Simples. Desde aquele duo, registrado no início da década de 1990 – e, justiça seja feita, também das parcerias entre Rabello e Ney Matogrosso, no mesmo período, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina e do encontro entre Mônica Salmaso e Paulo Bellinati -, não se ouvia um disco no formato voz e violão tão marcante como este.


Já que estamos falando de um álbum de intérprete, é bom lembrar que o primeiro passo para escapar do lugar-comum é a escolha do repertório. Neste sentido, apesar da curta idade, Ayrton Montarroyos dá uma aula. Vai de contemporâneos seus, como Ylana Queiroga (“Pé Na Estrada”), Lirinha, Junio Barreto e Bactéria (“Jabitacá”) a veteranos como Djavan (“Açaí”), Tom Jobim e Vinicius de Moraes (“Brigas Nunca Mais”), Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho (“Doce de Coco”) e Chico Buarque (“Mar e Lua” e “Cálice”, está em parceria com Gilberto Gil).


Somado a isso, há ainda um sem-fim de virtudes – e não virtuosismos e firulas – nas interpretações enriquecedoras de Ayrton e Capelupi. Basta ouvir o que a dupla faz ao desencravar joias como “Sem Pressa de Chegar” (em rara parceria de Capiba com Delcio Carvalho), “Sodade Matadeira” (gravada originalmente por seu próprio autor, Dorival Caymmi, 70 anos atrás; e, agora, com o violão lembrando “Passaredo”, de Chico e Francis Hime, na introdução) e “Dona Divergência” (punhal poético de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, gravado anteriormente por nomes como Jamelão, Jards Macalé, Linda Batista e Tom Zé, e, desta feita, com Montarroyos sábia e corajosamente transmitindo a densidade dos versos da canção). Não é toda hora que se escuta um disco capaz de combinar simultaneamente tanta sutileza e tanta contundência. Ouvir o álbum de Ayrton Montarroyos e Edmilson Capelupi é como entrar num caleidoscópio de passado, presente e futuro. E, aqui, falar de futuro significa já ansiar por um volume 2 deste duo tão espontâneo quanto sobrenatural. Por Lucas Nobile.

 

COMENTÁRIOS FAIXA À FAIXA: Por Ayrton Montarroyos

 

Pé Na Estrada (Ylana Yuri Queiroga)

 

Ylana Queiroga é a compositora desta música. É alguém por quem sinto muito carinho e respeito. As nossas noites em Recife tinham trocas completamente livres de tudo que fosse pequeno e pouco. Ela compunha, em casa, ali do meu lado, canções tão bonitas e que de certo modo faziam parte de tudo o que construímos naquele tempo. “Pé na Estrada” significa muito pra mim, por tudo que representa nas nossas vidas e isso já bastava a gravação. Mas essa canção vai além da beleza, que muitas vezes pode mascarar demais. O que não acontece aqui. Essa composição atinge algo além do belo e do agora e tudo isso pelo traço dela, pela inspiração que lhe é nata e por saber tanto sobre a vida. Obrigado, Ylana.

 

Açaí (Djavan)

 

Aos poucos vou me libertando das regras rígidas, loucas e tolas que me imponho. Cantar “Açaí” é pra mim maior do que a vontade de cantá-la, é cantar por que amo e isso deveria ser o suficiente para me fazer

gravar as músicas que quero. E a partir de agora assim será.

 

Sem Pressa de Chegar (Capiba e Décio de Carvalho)

 

Sem pressa de chegar fala muito sobre como conduzo a minha vida e o meio pelo qual encontro prazer e segurança. Não à toa, uma frase da canção batiza este disco. Talvez a vida seja esse mergulho no nada,

essa espera, esse contentamento com as visões da estrada.

 

Jabitacá (Lirinha – Júnio Barreto – Bactéria)

 

Ao olhar nos olhos dessa canção me vi em casa. Talvez por ser tão pernambucano quanto os seus compositores, talvez por ser Jabitacá uma serra de um lugar tão bonito onde vivi momentos lindos anos atrás. Acontece que “Jabitacá” é algo entre tudo o que há de singelo e as coisas mais exuberantes da minha terra.

 

Mar e Lua (Chico Buarque)

 

Sou canceriano, regido pela lua e totalmente influenciado pelo mar. A distância e a possibilidade fazem dessa música de chico algo sempre atual e de uma felicidade pouco comum. Eu sempre soube por onde se passavam as minhas marés e correntezas. Por saber de mim, entendo um pouco do que a canção me sugere e através disso sinto uma dor quase feliz quando canto ou escuto “Mar e Lua”.

 

Dona Divergência (Lupicínio Rodrigues)

 

A vida tem dessas coisas engraçadas: um dia estava lendo um livro sobre a época de ouro no Rio de Janeiro e me deparo com uma composição de Lupicínio Rodrigues, lançada por Linda Baptista, que eu não conhecia. Ouvi a música antes de dormir e acordei com ela em forma de um pedido de Rolando Boldrin, para que eu a cantasse em seu programa de televisão. É por essa música que a ideia desse show se deu, pois foi também por causa dela que o meu encontro com o querido Edmilson Capelupi foi possível e tão bonito.

 

Sodade Matadeira (Dorival Caymmi)

 

Caymmi compôs um Brasil tão sincero e grandioso! Sodade Matadeira é uma dessas preciosidades que ele deixou para quem, assim como eu, acredita na grandeza das coisas simples, como o amor.

 

Brigas Nunca Mais (Tom Jobim e Vinicius de Moraes)

 

Ouvi essa música pela primeira vez na voz de Elis Regina no álbum “Elis e Tom”. Eu não deveria nunca tocar em algo sacramentado por essa grande cantora, mas há nesse pensamento mais uma das minhas rígidas, loucas e tolas regras que devem ser combatidas em mim por mim. Elis é, não só na minha opinião, mas certamente, uma das maiores cantoras do mundo. Aprendi e aprendo diariamente com a sua forma única de interpretar e é também por causa dela que me faço o pouco que sou. Essa faixa é a minha homenagem a eterna Elis Regina.

 

Doce de Coco (Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho)

 

Acho que essa faixa carrega consigo a maior carga afetiva do disco para mim. Comecei a cantar em rodas de choro, levado pela minha amada tia Cirleide. E foi em uma dessas rodas que conheci essa canção.

Posso, inclusive, lembrar com exatidão do momento em que fui apresentado à essa composição de Jacob do Bandolim. Quantas e quantas vezes passei horas ouvindo, na voz da elegantíssima Elizeth Cardoso, “Doce de Coco”. Edmilson, que já acompanhou a rainha do choro Ademilde Fonseca, toca um violão de sete cordas típico dos chorões que me remete instantaneamente à minha infância e a tudo que era lindo na época daqueles encontros musicais de Recife, tão esperados por mim.

 

Cálice (Chico Buarque e Gilberto Gil)

 

Essa é a segunda composição de Chico Buarque (está em parceria com Gilberto Gil) neste álbum. É engraçado, para mim, observar que as suas duas canções presentes aqui falem sobre a condição humana e sobre cada uma ao seu modo, o amor como ato político. Cálice é uma canção forte, urgente e que mexe sempre comigo. Confesso que sempre hesito em cantar essa música, não sei o porquê. Mas quando

canto é como se aquelas palavras fossem ditas por mim pela primeira vez.

Músicas

  1. Pé Na Estrada

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Ylana Queiroga

  2. Sem Pressa de Chegar

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Capiba, Délcio Carvalho

  3. Jabitacá

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Bactéria, Junio Barreto, Lira

  4. Mar e Lua

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Chico Buarque

  5. Açaí

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Djavan

  6. Dona Divergência

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Felisberto Rodrigues, Lupicíno Rodrigues

  7. Sodade Matadera

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Dorival Caymmi

  8. Brigas Nunca Mais

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Tom Jobim, Vinicius de Moraes

  9. Doce de Côco

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Hermilio Bello de Carvalho, Jacob do Bandolim

  10. Cálice

    Intérprete: Ayrton Montarroyos Autoria: Chico Buarque, Gilberto Gil