Disponível em formato físico e digital o novo trabalho do músico Makeky Ka, lançado pela produtora e gravadora Kuarup, surgiu da curiosidade e interesse do artista pela sonoridade e pelas possibilidades da viola de 10 cordas a partir de uma viagem pelo Vale do Urucuia, no noroeste do estado de Minas Gerais, onde aprendeu algumas afinações alternativas como a que chamam “rio abaixo”, muito utilizada pelos violeiros daquela região. Essa afinação, também chamada de “sol aberto”, deu origem ao nome do disco: Rio Aberto. Todas as faixas autorais levam nomes de rios, cursos d’água que costuram elementos da geografia, da história e da literatura brasileira, ligando por exemplo, o sertão de Guimarães Rosa aos sertões de Euclides da Cunha, passando ainda pelo universo mítico do cantor Elomar, como também pela tragédia dos rios devastados pela mineração. São músicas experimentais, que dialogam com a tradição popular, mas incorporam referências contemporâneas como a microtonalidade, a polirritmia e a pesquisa de timbres. 

São doze faixas autorais que levam o nome de cursos d’água mais uma chamada Encontro das Águas, de Tavinho Moura. Dez delas remetem a afluentes do São Francisco, outras duas são referências a rios que deságuam direto no mar, Doce, também chamado Watu pelos Krenak e o Vaza-Barris, rio que banha Canudos, no sertão baiano e que frequenta o imaginário popular desde a publicação do livro Os Sertões de Euclides da Cunha no início do século passado. Nas palavras do artista: “Eu tento simular o movimento desses rios, os sons de suas corredeiras, quedas d’água, seus poços profundos, remansos, a barra ou foz, onde eles encontram o grande rio, os animais que frequentam suas margens e dependem dele para viver.”

Há algumas relações entre as faixas. O Rio do Sono por exemplo, que banha o vilarejo do Paredão de Minas, local onde aconteceu a batalha épica entre o bando dos Hermógenes e os Ramiro comandados por Riobaldo Tatarana no romance Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, deságua no Paracatu. A harmonia de um entra nas águas do outro, alguns movimentos se repetem, o ritmo fluente das corredeiras rápidas do rio de Morfeu se torna mais arrastado quando se encontra com o Paracatu. Um incorpora o outro, mas assume algumas das suas características. A síncope simula o encontro, a força das correntes contrárias medindo forças para afinal confluírem no mesmo fluxo. Nas músicas Makely toca viola de 10 cordas, também chamada caipira; viola dinâmica, conhecida também como nordestina; craviola, criada pelo músico brasileiro Paulinho Nogueira e produzida em escala industrial pela empresa Giannini a partir dos anos 70.

A viola vem do alaúde árabe, que se popularizou na Península Ibérica a partir da invasão dos mouros. Em algumas localidades de Portugal ainda é possível encontrar a viola de arame, ancestral da viola atual. Vinda nas caravelas, o instrumento de madeira com pares de cordas ganhou nos trópicos outras formas de construção, com madeiras, afinações e maneiras de tocar diferentes. Uma das primeiras violas construídas em série no Brasil foi a de Queluz de Minas, apreciada na corte, inclusive por Dom Pedro I. Ela provavelmente impôs o padrão de corpo delgado e acinturado replicado em todo o país. A longa tradição da viola no Brasil está intimamente relacionada às folias de reis, aos folguedos e brincadeiras da cultura popular. Toco nesse álbum com uma violinha de bigode construída em cedro brasileiro pelo luthier Wagner França, de Jaboticatubas, em 2012 e uma viola modelo clássico construída em jacarandá e cedro pelo luthier Lúcio Jacob de Viçosa em 2020.

A viola dinâmica tem cinco pares de cordas, a estrutura do corpo é semelhante à de um violão, mas ela possui um ressonador metálico, que projeta o som através de pequenas bocas dispostas no tampo. Foi muito utilizada pelos repentistas e cantadores nas feiras populares em todo o nordeste brasileiro. A que uso é um modelo de sete bocas fabricada pela Del Vecchio em 1975. A craviola foi desenhada pelo grande violonista e compositor campineiro Paulinho Nogueira. Ele queria aliar a sonoridade do cravo e da viola de dez. Ela foi patenteada pela Giannini que começou a produzi-las em 1970. O músico Jimny Page toca uma dessas no disco III do Led Zeppelin. A que tenho é um modelo Giannini de 1974. 

Nesse trabalho Makely presta tributo a Manoel de Oliveira, Renato Andrade, Tavinho Moura, Almir Sater, Heraldo do Monte, Paulo Freire e Ivan Vilela, que são suas principais referências no universo da viola. A regravação da música Encontro das Águas, canção do Tavinho que o artista conheceu através do Almir Sater, ganha aqui um sentido ampliado, tornando-se a confluência de todas essas águas num grande rio aberto a todas as influências. Num momento em que estamos na iminência de uma nova crise hídrica, com os aquíferos e mananciais ameaçados por mineradoras e empreendimentos imobiliários, o trabalho ganha também um caráter de alerta e de denúncia pela necessidade de preservação das nossas bacias. Rio Aberto é o quinto álbum de carreira de Makely, o sétimo se considerar os álbuns em colaboração com outros artistas. 

Texto de Ivan Vilela – Rio Aberto – Sons que escorrem pelos dedos 

O disco que você tem em mãos é, na realidade, um mapa sonoro-afetivo onde Makely verte impressões obtidas em viagens que empreendeu pelo sertão mineiro e baiano. Ele próprio nos diz: “As músicas levam nomes de rios que eu passei, cursos d’água que costuram elementos da geografia, da história e da literatura brasileira ligando, por exemplo, o sertão de Guimarães Rosa aos sertões de Euclides da Cunha (Vaza-Barris) além da tragédia dos rios devastados pela mineração (Doce e Paraopeba).”

Makely é mais um grande músico brasileiro que se encantou com a sonoridade da viola e viu nela um canal para exprimir a maneira como vê e sente o mundo. Seu toque é vigoroso e denso. As filigranas que afloram de seus dedos impõem às suas composições – todas vertidas em águas nos nomes dos rios – paisagens que nos fazem conhecer de perto cada um desses locais, mesmo sem lá termos ido. Makely compõe com a propriedade de quem já andou muito no caminho da música. A viola de Makely sugere caminhos que nos trazem a ideia de loopings dada a reafirmação das ideias musicais que, diga-se de passagem, nada têm de repetitivas. Evocam mais a ideia do espelho d’água do rio que na sua serenidade guarda um “sem fim” de movimentos dentro de seu leito. Qual fazemos com a visão quando queremos ver mais de perto, o ouvinte desavisado precisará focar sua audição para perceber que por detrás de uma prosódia quase constante descortina-se um universo de toques, ideias rítmico-melódicas amparadas por caminhos harmônicos novos. Estes diluídos no fraseado das melodias que evocam as sonoridades das violas do norte mineiro já desfiadas por Zé Coco do Riachão, Minervino da Viola, Manelim, Renato Andrade e Tavinho Moura. Nesse disco líquido, um Rio Aberto, Makely nos deixa claro que o músico criador, adiante de qualquer juízo que se possa ser feito sobre ele, está além como um observador do mundo que o cerca, da natureza da terra e de todas as contradições que possam aflorar na relação do homem com o espaço que o circunda. Mais uma grande aula sobre cultura brasileira em seus vários aspectos vertida em sons que além de nos embalarem, nos trazem a consciência de que nada conseguiremos ser sem a estrutura do mundo que nos ampara e envolve.

Sobre Makely Ka

Makely Ka é hoje um dos mais requisitados compositores de sua geração e pode ser ouvido na voz de Lô Borges, Samuel Rosa, Titane, Ná Ozzetti e José Miguel Wisnik entre dezenas de outros intérpretes. Lançou o disco coletivo A Outra Cidade em 2003, e Danaide em 2006 com a cantora Maísa Moura. O primeiro trabalho solo veio em 2008 com Autófago, considerado pela crítica um dos melhores discos de “roque brasileiro”. Em 2014 compôs, ao lado de Rafael Martini, a peça sinfônica em cinco movimentos Suíte Onírica, gravada com a Orquestra Sinfônica da Venezuela, o Coral do Teatro Teresa Carreño e sexteto sob regência do maestro português Osvaldo Ferreira. Em 2015, lançou o álbum Cavalo Motor, resultado de uma longa viagem realizada pela região noroeste de Minas Gerais, na divisa entre Bahia e Goiás. O disco tem participação de Arto Lindsay, Susana Salles, Décio Ramos (grupo UAKTI), O Grivo entre outros e foi transformado também em DVD.  O trabalho foi considerado um dos melhores lançamentos do ano e recebeu vários prêmios, entre eles o Grão da Música de melhor álbum de Música Brasileira. Em 2018 recebeu o prêmio Simparc de Artes Cênicas de melhor trilha sonora original para o espetáculo de dança Espelho da Lua, da Cia Mário Nascimento. Letrista inspirado e versátil, acumula parcerias com diversos compositores em todo o país, com destaque para o álbum Dínamo, inteiramente composto com Lô Borges e lançado em 2020. Como intérprete de suas próprias canções destaca-se pela sua voz grave e rascante e pelo violão vigoroso tocado de forma muito peculiar. O humor, a ironia e o sarcasmo estão sempre presentes nas apresentações ao vivo, que podem ser em formato solo ou com banda. Já tocou em alguns dos principais palcos do Brasil e excursionou por Portugal, Espanha, Dinamarca, Lituânia, Turquia, Grécia e México. Grande interlocutor da cena musical em Minas, Makely organizou mostras e festivais, participou de curadorias, produziu discos de outros artistas, fez direção artística de shows, criou trilhas para cinema, dança e teatro,  realizou documentários, compôs textos para peças sinfônicas e camerísticas, participou de conselhos estaduais e federais de cultura, fundou cooperativas e fóruns de música e escreveu diversos textos sobre política cultural, música, literatura e cinema que foram publicados em jornais, revistas e sites. Também publicou três livros de poemas e atuou como editor de revistas de poesia. No momento, prepara o lançamento do livro Música Orgânica e está compondo a trilha sonora do balé Rios Voadores, da coreógrafa Rosa Antuña.

Músicas

  1. Batistério

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  2. Paracatu

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  3. Urucuia

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  4. Jequitaí

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  5. Paraopeba

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  6. Carinhanha

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  7. Rio do Sono

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  8. Das Velhas

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  9. Verde Grande

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  10. Pardo

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  11. Doce

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  12. Vaza-Barris

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Makely Ka

  13. Encontro das Águas

    Intérprete: Makely Ka Autoria: Fernando Brant, Tavinho Moura